no desesperado desejo de explicar o que sinto coloco no outro o poder de narrar minha vida. no desesperado desejo de detalhar cada pensamento, coloco no outro o poder de ser juíz da minha realidade. sim, é gostoso explicar, é gostoso ser compreendido. afinal, ser enxergado na sua inteireza é ser amado. mas ser enxergado não significa ser compreendido em todas as mínimas instâncias do seu ser, porque esse espaço, tão profundo, tão único, é só seu.
se a minha forma de experienciar a vida é tão única a mim, a forma do outro também é única do outro. cada um habita um mundo próprio e cada um, por amor, precisa cultivar um espaço para se testemunhar. é como se fossemos o contador da história e a criança que ouve. por isso, todos os dias, separo alguns momentos para experienciar minha vida como uma estrangeira. respeito as dores, os medos, as angústias da minha persona. tudo bem com o que foi dito e tudo bem com o que não foi dito. tudo bem. me separo do mundo, olho de longe, respiro, desapego. reconheço a humana, reconheço a experiência do corpo. me assisto. isso é criar espaço.
querer ultrapassar os limites da compreensão do mundo do outro é controle. posso te amar e nunca saberei por completo tudo o que se passa no seu íntimo. o amor é, justamente, amar essa falta. a angústia de não conseguir saber o que se passa na mente da pessoa amada só pode ser preenchida com mais amor. respeitar a subjetividade de cada um é amor. por mais que as palavras sejam tão cheias de possibilidades e que muitas traduções do que se passa no nosso peito sejam possíveis, ainda assim, o espaço que existe dentro de nós é absolutamente único e intraduzível.
por isso, quando digo azul e você entende verde, tudo bem. porque você recebe as informações a partir desse completo mundo que eu desconheço. posso aprender muito sobre você, mas ainda não saberei tudo. você pode saber muito sobre mim, e ainda não me compreenderá. nem eu vou. não vamos. sentir é mais importante que saber, e racionalizar em excesso intimida a beleza das coisas invisíveis.
viver o máximo da potência das nossas relações humanas envolve coexistir com as faltas, não querer preencher todos os espaços, não querer controlar todas as histórias. estar vivo é deixar o corpo ser transformado e sentir os dias sem tanta necessidade de dar nome a tudo.
poesia é uma das artes que mais nos faz sentir e sermos compreendidos justamente porque ela não explica. ela só deságua. as vezes leio algo que ressoa no meu íntimo mais profundo e me faz compreender coisas que nem sei explicar. sem querer, talvez nem fosse o propósito do autor, porque afinal, ele só estava ali, desaguando também. as vezes, numa conversa, alguém pode estar falando sobre um assunto que não tenho experiência, mas algo, em alguma frase, me faz entender ou descobrir uma nova coisa sobre mim. e nem era esse o assunto. você pode estar falando sobre seu dia e algo, de repente, me cura, me esclarece, me revela. nem era esse seu propósito. você não estava tentando. só estava sendo. esse é o poder dos encontros.
a magia dos encontros acontece, justamente, nesse rio de significados que se cria a partir das nossas trocas, que está para além da nossa compreensão. abrir mão de saber o significado de tudo é amor. eu aceito e amo exatamente o que chega até mim, e respeito tudo aquilo que não sei.
excesso de análise é medo. excesso de ruminação mental é controle. excesso de vontade de explicar-se é esquecer que seu íntimo é único e que só você pode amá-lo e legitimá-lo na sua inteireza. seus processos são reais. são seus. intraduzíveis. ame-os.
quando você vai pra vida com essa certeza de que não precisa provar pra ninguém que sua experiência humana é verdadeira, o mundo se torna um lugar muito mais divertido. o medo é você, a necessidade de se explicar é você, mas esse lugar quentinho que te ama, que reconhece, que testemunha seu mundo interno, também é você.
somos as nossas maiores testemunhas.
ao criar um espaço de apreciação da sua própria existência, uma certa magia começa a acontecer. de repente, você se sentirá tão pronta pra vida que já não se importará em explicar. irá escolher, por fim, amar as possibilidades da dúvida, celebrar o significado único de cada coisa. cada dia será uma dança. você deixará o outro ser o outro, e você ser você.